quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Vale a pena ler


Este é um texto longo para acompanhar o fim-de-semana que ai vem. Também ele longo. Gosto de chamar a estes fins-de-semana de XL (extra large). Estava eu feito rato de biblioteca, no meio de muitas obras fazendo umas pesquisas bibliográficas e encontrei este texto. Achei-o interessante publicar e transcrevo o texto na íntegra. Provavelmente muitos já leram. Para estes, ler mais uma vez não lhes vai provocar overdose. Para os que lêem pela primeira vez, disfrutem-no.

É um diálogo em que o objectivo é demonstrar que a quantidade não é suficiente para se ter razão. É uma oposição as teses segundo as quais, o povo, não precisa ter razão, basta estar em superioridade numérica.

“─ Diz-me, Péricles, poderias ensinar-me o que é a lei?
─ Evidentemente ─ responde Péricles.
─ Em nome dos deuses, ensina-me. Ouço gabar certas pessoas por observarem religiosamente as leis e acho que ninguém pode merecer esse elogio se não souber o que é uma lei.
─ Desejas, Alcibíades, uma coisa muito fácil, se queres saber o que é uma lei. Chama-se assim a toda a deliberação em virtude da qual o povo reunido em assembleia decreta o que se deve fazer ou não fazer.
─ E o que o povo ordena que se faça, é o bem ou o mal?
─ Ora, jovem, é o bem, certamente ─ responde Péricles. ─ Queres que o povo ordene o mal? ─ E aqui transparece o “optimismo democrático”, de que a presunção do bom juízo do povo é um elemento fundamental.
Alcibíades não responde directamente e desencadeia um ataque mais subtil, onde brilham os seus talentos de dialéctico instruído na escola de Sócrates:
─ Mas se não for o povo, se for um pequeno número de cidadãos, como na oligarquia, a reunir-se e a prescrever o que se deve fazer, como se chama a isso?
─ Desde que a porção de cidadãos que governa ordene alguma coisa, é uma lei ─ observa Péricles.
─ Mas se um tirano usurpa o poder e prescreve ao povo o que este deve fazer, ainda é uma lei? ─ Prossegue Alcibíades.
─ Sim, porque provém daquele que manda.
Péricles formula assim a concepção do positivismo jurídico: a identificação da lei com a ordem que emana regularmente do poder estabelecido, desde que o seu exercício seja conforme à constituição. Não tem cabimento apreciar o conteúdo interno do imperativo; só há que examinar se é imposto regularmente pelas autoridades instituídas.
Alimentado de filosofia, Alcibíades volta à carga:
─ Mas então, quando é que se trata de violência e subversão das leis? Não é quando o poderoso, desprezando a persuasão, obriga o fraco a fazer o que ele quer?
Deste modo, Alcibíades propõe um critério novo: a lei só terá validade no caso de aqueles a quem obriga a aceitarem por meio de persuasão. A partir do momento em que a regra lhes for imposta, haverá violência e falta aos princípios das leis. A ideia é extremamente importante e será retomada por Platão, com vista a distinguir entre a acção política, imperativo exercido por meio de persuasão, e a ordem imposta, que não será digna desse nome.
Péricles assente: ─ Acho que sim.
Alcibíades aproveita: então, o tirano que obriga o cidadão a seguir os seus caprichos é inimigo das leis?
Desta vez, Péricles bate em retirada:
─ Sim, enganei-me ao chamar leis às ordens de um tirano que não emprega a persuasão.
A partir desta altura, Alcibíades recupera definitivamente a supremacia e, do tirano, retorna à oligarquia:
─ Mas quando um pequeno número de cidadãos, revestidos do poder soberano, impõe a sua vontade à multidão sem obter consentimento, chamamos a isso violência ou não?
Nova aprovação de Péricles:
─ Venha a ordem de onde vier, seja escrita ou não, desde que se baseie apenas na força, parece-me mais um acto de violência do que uma lei.
Assim, por meio da dialéctica do seu jovem pupilo, Péricles é obrigado a admitir, sucessivamente, que a introdução de coerção vicia a lei, que essa coerção é habitual no tirano e nos oligarcas, mas que também se pode encontrar na multidão em democracia. Contudo, Péricles minimiza a sua derrota reconduzindo o debate a uma controvérsia de escola:
─ Quando tínhamos a tua idade ─ diz a Alcibíades ─ éramos muito entendidos nesses problemas. Gostávamos de subtilizar, de sofisticar, como tu fazes agora.
E Alcibíades conclui com um cumprimento que não é isento de ironia:
─ Péricles, como eu te ouvia nesse tempo em que estavas acima de ti próprio!”

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